segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

ESTAÇÕES

Nesta virada de ano, tem-se a impressão de que as estações enlouqueceram. As chuvas, principalmente, não cansam de inundar o Sul do Brasil, mais os países vizinhos. São as chuvas de verão, poderia alguém dizer, repetindo uma frase feita. Mas a marca das chuvas de verão, e por isso elas passaram a servir de metáfora do efêmero, era o de serem passageiras. E acontece também que as mesmas enxurradas, arrastando casas, carros e encostas, estão assustando a Inglaterra. E, a não ser que o planeta tenha enlouquecido de vez, na Inglaterra agora é inverno.
De Caxias do sul já se disse que a cidade consegue ter as quatro estações – as antigas: primavera, verão, outono e inverno – no mesmo dia. Também se disse que a cidade tem, de fato, apenas duas estações: o inverno e a estação rodoviária. Mas nada disso mais está valendo. Temos em definitivo apenas uma estação: a das chuvas.
Desconfio que até um pequeno poema que fiz há tempo, com o título de “Estações”, tenha também perdido a validade. Em todo o caso vai um pedaço dele aqui, como um salvado da enchente:

“estações
do dia, no giro das horas
do ano, no giro dos dias
da vida, no giro dos anos
estações
de partida e de chegada
estações
da flor, do fruto
estações”.
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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

AFINIDADES

 Quando saiu meu romance O quatrilho, um crítico português o comparou, na forma e no tema, com o romance do escritor italiano Cesare Pavese, nascido em 1908. Obra e autor que eu nunca havia lido. Foi a partir daí que fui à sua procura e, de fato, encontrei pontos de afinidade com ele. Também ele fez poesia, também ele foi professor de Literatura e também ele não tinha estômago para suportar ditaduras...
Um livro de Pavese, Lavorare stanca (em português: Trabalhar cansa) sofreu com a censura fascista para ser editado: o título já era visto como uma provocação ao regime. Um outro poema dele, Il dio caprone (“o deus bode”) – que parece ter sido associado com a figura de Mussolini, talvez não por acaso – custou-lhe anos de isolamento na Calábria.
Mas censurar os poetas não foi só obra do fascismo ou da ditadura militar que tivemos no Brasil. Um poeta russo, Osip Mandelstam, foi condenado a trabalhos forçados em Vladivostok, na Sibéria, por causa de uns versos em que fazia humor com os bigodões, o uniforme, os gritos e as botas lustrosas de Stalin. Foram dezesseis versos que significaram sua sentença de morte: morreu na Sibéria de “paralisia cardíaca”.
Cesare Pavese, ao menos, pôde ainda dar o troco com estes versos: “Privando-me do mar, do espaço para andar e voar / o que vocês conseguiram? Cálculo brilhante: / vocês não conseguiram extirpar os lábios que se movem”.

Afinidades existem sempre entre os poetas. Como existem entre os ditadores, não importa a bandeira que ergam.
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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

140 ANOS DEPOIS

Depois de 140 anos de “coabitação” cultural, nesta região de imigração italiana, parece claro para todos, ou quase todos, que as diferenças culturais são um patrimônio que não faz sentido ser eliminado. Ao contrário, a diferença deve ser cultivada. Onde não há diferenças, não há também trocas, não há comércio, não há tempero nas relações.
            Lévi-Strauss, na última vez em que falou na Unesco sobre políticas culturais, fez questão de frisar a necessidade da diferença, para que haja saúde social. Chegou a dizer que a diferença exige até mesmo certo grau de discriminação. Ela só não deve se manifestar de forma agressiva, ou excludente. Sem esse laivo pejorativo, ela pode ser base de uma convivência enriquecida pela possibilidade das trocas.
            Caxias do Sul, depois de 140 anos, é uma cidade pluricultural: além da cultura do gaúcho, com a qual o imigrante italiano iniciou o processo de mútuo aprendizado, conta ela hoje com a contribuição de inúmeras outras fisionomias culturais do Brasil inteiro, e mais, do mundo inteiro.

Será ela no futuro uma cidade sem rosto, igual a qualquer cidade de seu porte? Certamente não. A identidade nela criada é tão peculiar que resistirá à incerteza das mudanças. Há nela um patrimônio gravado tão fundo “na mente e no coração das pessoas”, tanto das que aí nasceram como das que chegam e aprendem sua história, que ela saberá resistir à corrosão do tempo. Essa parece ser a melhor herança amealhada, com pertinácia e coragem, nestes 140 anos de história da imigração.
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

TAMBÉM...

Lidar com as palavras parece fácil. Até a gente descobrir que pode não ser tão fácil como parece. Uma simples mudança de lugar de uma delas, na frase, pode mudar todo o sentido do que se pretende dizer. É lendo diferentes autores, de diferentes estilos, de diferentes épocas, até mesmo de línguas diferentes, que se descobre como é possível armar, com toda sutileza, e com grande economia verbal, pequenas surpresas. Quem não faz isso, erra sem nem perceber.
Para mostrar isso aos alunos, colocava diante deles, para que vissem alguma diferença de significado, as seguintes quatro frases, todas com as mesmas palavras: 1) também a gente anda a pé, 2) a gente também anda a pé, 3) a gente anda também a pé, 4) a gente anda a pé também.
A brincadeira consumia às vezes uma aula inteira, dependendo da agilidade da turma. Se o leitor quiser entrar na roda, vai ver que nenhuma delas coincide exatamente com o sentido das outras. É a palavrinha  “também” – que pode ser advérbio ou conjunção, é bom estar atento - que põe a bailar as outras.
Um dia o professor é quem foi surpreendido. Depois de terminado o exame de cada uma das sequências, um aluno levantou o dedo, com ar compenetrado, e falou:
- Professor, dá para fazer outra montagem com essas palavras. É só transformar o “também” numa interjeição. Bom, para isso é preciso acrescentar uma vírgula. E fica melhor colocando um ponto de exclamação no fim.
A turma inteira ficou em suspense. Ele então completou, triunfante:

- Também, a gente anda a pé!
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